No Brasil, a fome não é apenas uma tragédia social. Para muitos estudiosos e analistas, ela é também um instrumento político — usado, consciente ou inconscientemente, para garantir influência e votos. A frase popular “a fome é um projeto de poder” sintetiza essa visão: manter parte da população em situação de vulnerabilidade cria dependência, e dependência gera capital político.
Promessas saborosas, realidade amarga
Durante a campanha eleitoral de 2022, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva reforçou seu apelo junto ao eleitorado mais pobre com promessas que foram muito além de números e estatísticas. Em comícios e discursos, afirmou que “o povo vai voltar a comer picanha e tomar cervejinha no fim de semana” — símbolo de prosperidade e de uma vida mais digna para milhões de brasileiros.
A mensagem era clara: o retorno dele ao poder traria não apenas políticas sociais, mas também a sensação de abundância e bem-estar. Essa promessa funcionou como um forte instrumento de mobilização eleitoral, especialmente entre aqueles que enfrentavam desemprego, alta de preços e insegurança alimentar.

Dependência como moeda eleitoral
Segundo levantamento da Veja, mais da metade dos adultos brasileiros (53%) depende diretamente de recursos públicos para sobreviver. Esse dado por si só revela o tamanho da vulnerabilidade e a força do chamado clientelismo — prática em que programas sociais se transformam em favores pessoais e votos garantidos.
O problema não está nos programas em si, mas na forma como eles podem ser explorados eleitoralmente. Em várias campanhas, benefícios como o Bolsa Família foram apresentados não como política pública de Estado, mas como conquista de um político ou partido, reforçando a lógica do “eu te dou, você me apoia”.
A fome pode acabar — quando há vontade política
A contradição é evidente. Nos últimos anos, políticas sociais bem executadas mostraram que a fome é reversível.
Entre 2022 e 2023, o número de brasileiros em insegurança alimentar severa caiu de 17,2 milhões para 2,5 milhões — redução de 85%, segundo dados da Rede Penssan. Em 2025, a ONU retirou o Brasil do Mapa da Fome, já que menos de 2,5% da população estava em situação de subnutrição.
Esses resultados vieram com a retomada e ampliação de programas como:
- Bolsa Família, com valores reajustados e benefícios adicionais para crianças e gestantes.
- Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra de pequenos agricultores para abastecer escolas, hospitais e cozinhas comunitárias.
- Plano Brasil Sem Fome, integrando ações de vários ministérios para combater a miséria de forma estruturada.
O paradoxo do poder
Aqui está o ponto central: quando as políticas são bem aplicadas, milhões saem da pobreza e ganham autonomia. Porém, o sucesso dessas ações também se converte em força política para quem as implementa, criando um ciclo onde resultados sociais e manutenção de poder caminham juntos.
Isso explica por que, em alguns casos, a erradicação total da pobreza não parece ser prioridade: a miséria controlada mantém uma base fiel de apoio, mas também garante que sempre haja espaço para novas promessas — inclusive as que despertam o imaginário popular, como a picanha e a cerveja do fim de semana.
Um problema histórico e regional
O uso político da pobreza não é exclusividade brasileira. Em vários países da América Latina, líderes carismáticos — de diferentes espectros ideológicos — usaram a distribuição de benefícios como estratégia de fidelização eleitoral.
No Brasil, essa prática tem raízes no coronelismo do início do século XX, quando favores e cestas básicas garantiam votos no interior. Hoje, a dinâmica é mais sofisticada, mas a essência permanece.
A fome no Brasil não é inevitável — os números provam que ela pode ser drasticamente reduzida com políticas consistentes e recursos bem aplicados. O desafio é romper com o uso eleitoral da miséria, transformando programas assistenciais em políticas de Estado permanentes, blindadas de interesses partidários.
Enquanto a fome for tratada como instrumento de poder — e promessas sedutoras como “picanha e cerveja” forem usadas para ganhar votos — o Brasil continuará preso a um ciclo perverso onde a necessidade alimenta tanto estômagos vazios quanto urnas cheias.
∗ Este texto aborda uma realidade do Brasil, mas não significa que o autor da obra ou a LUONA estejam, de qualquer forma, atacando ou apoiando algum partido ou posição política. A LUONA mantém seu compromisso de neutralidade pública em questões políticas. Ainda que colaboradores e proprietário possam ter suas opiniões pessoais, fica claro que nenhum deles está autorizado a usar conteúdos do espaço da LUONA para influenciar, apoiar ou criticar qualquer partido, candidato ou posição política com o objetivo de favorecer suas próprias convicções.